quinta-feira, 6 de março de 2008

A prática de uma utopia

Um conjunto de esforços, envolvendo diferentes segmentos sociais e em especial os jovens, transforma a violenta realidade de uma região mineira.


Publicação: Samir Raoni
Ao longo da minha vida e também da carreira de Policial Militar, sempre ouvi as pessoas falarem da paz e por ela se mobilizarem. Nos últimos anos, os movimentos foram mais intensos e mais divulgados, principalmente aqueles ocorridos após perdas trágicas e violentas. Entretanto, a perda de uma pessoa, nessas condições, deve ser considerada o ponto máximo da falta de paz. Não podemos esperar que vidas inocentes sejam ceifadas para que, só então, nos manifestemos pela paz. Ela deve ser construída e conquistada no dia-a-dia, observando-se os mínimos detalhes para a sua consolidação. A paz, tão almejada por todos, tem de começar a ser construída dentro da principal célula da sociedade – a família. Famílias desestruturadas têm sido, na maioria das vezes, a causa da vida sem paz, tendo em vista que, se não houver harmonia entre pais, filhos, irmãos e outros integrantes do lar, isso vai se refletir negativamente na relação com outros grupos sociais, como vizinhança, escola, trabalho etc. O perfeito exercício da cidadania também tem reflexos bastante positivos na busca pela paz, pois, com certeza, se todo integrante de um grupo social, seja ele qual for, tiver consciência dos seus direitos e deveres, não haverá desentendimentos em razão da perturbação do sossego de cada um. Mesmo ações aparentemente simples, como excesso de ruídos, lixo colocado em locais indevidos, brigas no trânsito, veículos estacionados sobre faixas de pedestres ou em locais proibidos, por várias vezes, terminam em tragédias. Outro empenho indispensável para que a paz possa reinar em qualquer grupo é o que deve ser dedicado à prevenção às drogas. Estas têm destruído famílias e entrado na vida de muitos jovens de maneira precoce, levando-os à prática de crimes, geralmente contra o patrimônio, para que possam sustentar o vício, às vezes subtraindo os bens materiais dos próprios lares. Como é sabido, a dívida oriunda do tráfico de drogas é paga com dinheiro, bens materiais, ou com a própria vida. Num segundo momento, falhando a prevenção, esse empenho tem de ser direcionado à repressão qualificada e à recuperação daqueles que já estão escravizados pelo uso da droga.
Sabemos que a missão pela construção da paz é árdua, especialmente numa sociedade tão degradada pelo materialismo, pelo consumismo e que não tem cultuado valores importantes para a vida em grupo. Todavia, temos de acreditar que, com trabalho sério, fé em Deus e a cumplicidade de todos os atores envolvidos em tão nobre missão bons resultados surgirão. Exemplo disso está sendo vivenciado na localidade que está, no que diz respeito ao policiamento ostensivo, sob a responsabilidade da Companhia de Polícia Militar que hoje comando – a 69ª Companhia PM do 35º Batalhão de Polícia Militar de Minas Gerais –, formada pelo Conjunto Palmital e outros cinco bairros da cidade de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte. Composta por um grande aglomerado urbano, com população estimada em aproximadamente 80 mil pessoas, algumas pobres e outras abaixo da linha da pobreza, a área sempre foi conhecida pela violência e pelo alto índice de criminalidade, principalmente pelos crimes contra a vida. A realidade dessa localidade começou a mudar a partir de julho de 2004, quando foi instalada, na principal praça do Conjunto Palmital, a 69ª Companhia de Polícia Militar e, em março de 2005, o Núcleo de Prevenção à Criminalidade, da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais, onde passaram a funcionar os programas Fica Vivo! e Mediação de Conflitos. Juntos, Polícia Militar e Núcleo de Prevenção, com o apoio da Prefeitura Municipal de Santa Luzia, conseguiram mobilizar outros órgãos do Sistema de Defesa Social, como Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário, além da iniciativa privada e, em especial, os jovens das diversas comunidades que começaram a se envolver de forma mais efetiva, quando foram chamados a ser protagonistas neste processo de construção da paz.
No Programa Fica Vivo!, voltado para a redução de homicídios, que atende a jovens de 12 a 24 anos em oficinas de esporte, lazer, inclusão produtiva e comunicação, eles têm oportunidade de passar da condição de atendidos à condição de multiplicadores e, desta, a oficineiros, sendo construída com eles outra forma de lidar com os conflitos, as diferenças, o respeito ao próximo, o valor da educação formal, além de outros valores. Ainda dentro da dinâmica do programa, existem momentos em que a polícia e os jovens se encontram para discutir vários temas, tais como a abordagem policial e a visão dos jovens em relação à polícia e vice-versa, o que tem ocasionado o surgimento de importantes lideranças juvenis para a consecução dos objetivos propostos. Por meio de reuniões com os envolvidos nesse processo pela paz, buscou-se mudar a imagem local e oferecer aos seus moradores uma melhor qualidade de vida, com programas que vêm sendo desenvolvidos além das oficinas do Fica Vivo!, como as intervenções dos técnicos do programa Mediação de Conflitos, as ações sociais da prefeitura local, melhoria na iluminação pública, escolinha de atletismo e música, limpeza de terrenos baldios e de logradouros, revitalização de espaços públicos, participação mais efetiva da comunidade nas reuniões do Conselho Comunitário de Segurança Pública (Consep) e palestras sobre cidadania e prevenção às drogas. Há de se destacar, também, a criação do Grupo Especializado em Policiamento de Áreas de Risco (Gepar) que, com uma doutrina própria de execução do policiamento ostensivo, baseada nas filosofias do policiamento comunitário e dos direitos humanos, atua nas comunidades em locais de maior vulnerabilidade social e criminal, ajudando os moradores em suas demandas diárias, buscando mostrar que o Estado oficial ali se faz presente, angariando a confiança e a simpatia desses moradores, evitando a instalação do estado paralelo voltado para o tráfico de drogas e outras modalidades criminosas. Outra iniciativa é o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd), ministrado a alunos de quartas e sextas séries e que objetiva evitar que crianças e adolescentes em fase escolar iniciem o uso de drogas, despertando-lhes a consciência para este problema e também para a questão da violência.
A parceria com os diversos atores tem se mostrado eficiente, pois a cidade de Santa Luzia, que durante muitos anos freqüentou os quatro primeiros lugares no ranking das mais violentas do estado de Minas Gerais, hoje ocupa a 37ª posição, com tendência a melhorar ainda mais esta performance. No mês de julho de 2007, por exemplo, a cidade comemorou um acontecimento há muito não vivido: passar todo o mês sem que nenhum crime de homicídio fosse registrado. Conseqüentemente, o índice mensal de crimes violentos foi o menor dos últimos anos. No Conjunto Palmital, é também motivo de muita alegria e comemoração a marca de 100 dias sem homicídios, alcançada no dia 20 de agosto de 2007. Também se destaca a queda de mais de 50% neste tipo de crime, se comparado ao mesmo período do ano passado, além da considerável queda no índice geral de crimes violentos. As medidas tomadas surtiram efeito ainda na queda dos registros de outras ocorrências, tais como: perturbação do sossego por excesso de ruídos, depredação do patrimônio público, principalmente luminárias da iluminação pública, escolas, telefones públicos e transporte coletivo, além da redução das brigas e desentendimentos familiares, desrespeito às regras de trânsito e circulação, reclamações por mau atendimento policial e/ou violência policial. Com isso, a participação da comunidade nas denúncias de crimes tem aumentado, bem como os elogios à atuação da polícia. E é pequeno o número de acionamento para a presença policial nas escolas públicas e privadas. A experiência, como se vê, tem dado certo. Portanto, depreende-se que, se quisermos construir uma paz duradoura, não podemos esperar que tragédias batam em nossas portas, nem que haja a perda de entes queridos para irmos para as ruas culpar os governantes e a sociedade, da qual fazemos parte. Somos responsáveis por suas mazelas. Temos de agir, de agregar todos os esforços à nossa disposição, respeitar os direitos dos nossos semelhantes, observar todos os detalhes para que nosso objetivo seja alcançado. Uma morte violenta é o ponto máximo da falta de paz, e tudo temos de fazer para evitá-la. Temos de estar sempre em busca de uma sociedade na qual reinem o respeito mútuo, a harmonia, o entendimento e a solidariedade, sem drogas e sem violência, e que cada um saiba que o direito pessoal termina onde começa o direito do outro. Como dizia uma antiga e bonita canção: “Chamem a isso utopia, eu a isso chamo paz!”.
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Matéria publicada na Edição 9 - Novembro de 2007 - Paz

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