sábado, 16 de fevereiro de 2008

Ativistas da Paz


Jovens brasileiros se envolvem em iniciativas que promovem a paz e podem mudar as estatísticas que os colocam no cerne da violência

Por: Aydano André Motta
Publicação: Samir Raoni
Desde que o mundo é mundo, cabe aos jovens andar na contramão, para protagonizar rupturas, firmar mudanças, remover ao lixo da História o que caducou. No Brasil do século 21, também, muitos deles seguem o caminho inverso ao que lhes parecia reservado pelo destino. São jovens, milhares deles, desafiando as estatísticas que os condenam ao envolvimento com a violência, nos igualmente trágicos papéis de algozes ou vítimas. Resolveram dar meia-volta nesta história e professar a atitude mais preciosa em nossos dias: a busca da paz. Cabe a eles ajudar a virar o jogo no país que, não bastasse estar entre os de maior desigualdade social, possui ainda o oitavo maior arsenal de armas leves do mundo – 15 milhões de revólveres e pistolas, a maioria disparados contra quem tem de 15 a 29 anos. Na sociedade atravessada pela intolerância e pela discriminação, os jovens ativistas da paz nadam contra a maré, cada um do seu jeito, segundo suas convicções e estratégias, mas todos conduzidos pela certeza de que somente a postura diferente permitirá outro futuro. Neste panorama, a paz nasce na simplicidade despojada de um abraço gratuito, no meio da rua, no meio do dia; na transmissão da informação que promove liberdade e cidadania diante da censura e do descaso; na fé que prega o entendimento pela via segura do diálogo; ou na luta serena contra o preconceito de quem não admite a diferença. Na verdade, eles seguem com meios próprios o caminho proposto, 42 anos atrás, na Declaração para os Jovens dos Ideais de Paz, Respeito e Compreensão entre os Povos, proclamada pelas Nações Unidas. Nela consta: “A juventude deve ser educada no espírito da paz, da justiça, da liberdade, do respeito e da compreensão mútuos, a fim de promover a igualdade de direitos entre todos os seres humanos”. O texto, Princípio 1 do documento, data de 7 de dezembro de 1965, muito antes de Rafaela Rocha nascer. Mas ela parece conhecê-lo de cor. Aos 16 anos, a paulistana da zona Norte, estudante do segundo ano do Ensino Médio, lidera o Abraço Grátis, grupo de jovens que, pelo menos duas vezes por semana, pára numa rua de grande movimento e abre sua placa: “Abraços grátis”. Eles saem abraçando as pessoas, enfrentam muitas vezes reações hostis, mas não desistem até conseguir alegria e confraternização. “Tem gente que passa e ri, outros abraçam rapidamente e seguem apressados, alguns entram no clima e sorriem”, descreve Rafaela. Um dia de 2006, navegando a esmo pela internet, ela conheceu a história do australiano Juan Mann, o homem que percorria as ruas de Sydney com um cartaz escrito “Free hugs”, distribuindo abraços, e ficou famoso mundo afora. A jovem decidiu repetir o gesto na maior cidade do país e hoje comanda um grupo de 30 pessoas, com idades entre 15 e 25 anos, que, convocados pela internet, se vestem de alegria e distribuem fraternidade entre sorrisos e brincadeiras. Rafaela conta que a idéia nasceu do desconforto de viver num tempo de desconfiança e estresse. “Foi um gesto bonito que copiei. Na maior parte do tempo, a gente não faz nada para melhorar a rotina, ninguém dá bom dia, pergunta como vai. Sempre acreditei que uma palavra pode mudar o mundo. Um abraço também. Todo mundo precisa de afeto”, ensina a estudante, que conta ter aprendido a importância do carinho na amargura pela separação de seus pais. “Tem gente que parece não ganhar um abraço há anos”, diz, contando que, muitas vezes, pessoas que não são do movimento resolvem se abraçar também, mobilizadas pelo clima. É quando a missão está cumprida.
Barreiras invisíveis
A um Brasil de distância dos abraços de Rafaela, a comunidade do Coque, nos arredores de Recife, também precisa de paz. Mas por lá, os caminhos são outros. Seus 50 mil habitantes – a maioria vivendo abaixo da linha da pobreza – sofrem com a marginalização causada pela imagem cristalizada do lugar como o reino da brutalidade. Fecha-se, então, a ciranda: ninguém ajuda porque é violento; é violento porque ninguém ajuda. Para quebrá-la, nasceu o Mabi – Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis, que promove ações culturais, produção de jornais e fanzines e oficinas de desenho e música. Um dos líderes da luta pela conscientização que derruba obstáculos que não se vê é Rafael da Silva Freitas, 17 anos. Há dois anos, ele integra a Etapas (Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa e Ação Social), ONG que organiza eventos e programas na região, espalhando cultura para remover a desesperança. “As pessoas querem coisas boas. Falta fazer”, constata ele, estudante do 2º ano do Ensino Médio, nascido no Coque, que trabalha como monitor da oficina de desenho. Rafael planeja estudar Design e Comunicação, mas jamais vai virar a página da solidariedade. “Quero continuar fazendo parte de movimentos como esse, porque eles são necessários”, diz. Para Marcos Rêner Francisco de Almeida, 22 anos, os obstáculos vão caindo enquanto ele prega seu aforismo particular: não existe diferença, não pode existir diferença – para que viver seja menos perigoso. Ator iniciante nascido em Campinas, Marcos é bissexual e no seu dia-a-dia encara muito preconceito. Sua arma: a serenidade. “Temos de encarar a homofobia, que ainda é forte no Brasil, e a única maneira é não responder no mesmo tom. Por mais ímpeto que se tenha”, diz, referindo-se à aversão às pessoas de orientação homossexual. Coordenador cultural da E-Camp, braço em Campinas da ONG E-Jovem, de combate à intolerância e ao preconceito contra os homossexuais, Marcos ensina teatro e usa sua arte como ferramenta para se impor como cidadão. Às vítimas de discriminação, ele aconselha o registro de ocorrência na polícia – porque não adianta absolver as instituições. “Pode até não adiantar muito, na prática, mas é nosso dever”, sublinha Marcos, que vive feliz com o pai e os irmãos, todos heterossexuais. No trabalho, já foi discriminado por um chefe. “Conversei com ele e meus argumentos foram ouvidos”, conta, aplicando sua própria receita.
Fé no diálogo
Consultar e conversar também tornou-se o caminho para a paz, na crença de Juliana Augusto Shams, 22 anos, integrante da juventude da Comunidade Bahá’í do Brasil. Criada na Pérsia (atual Irã), em 1844, a doutrina é um antídoto para as explosivas sociedades contemporâneas. Sem dogmas, rituais, clero ou sacerdócio, tem como objetivo a paz entre os homens e defende o senso de justiça como filosofia suprema. Sua tradução brasileira desembocou na solidariedade. Como o calendário bahá’í divide-se em meses de 19 dias, os dias que sobram, chamados intercalares, são dedicados a serviços para a humanidade. “Se as pessoas à nossa volta não estiverem bem, nós também não estamos”, entende Juliana. E ela não economiza. Moradora de São Carlos, no interior paulista, onde estuda engenharia agrônoma, participa de atividades que buscam o bem-estar social em asilos, dá aula de educação moral para crianças e, nos fins de semana, ministra cursos para adolescentes em escolas públicas. Ainda ensina jardinagem em comunidades populares de Piracicaba. “A fé bahá’í nos ensina a desenvolver a paciência, para juntos acharmos a verdade.” Assim, Juliana – mulher e filha de praticantes da religião persa – não se incomoda com os poucos amigos que ainda estranham suas convicções. A prática diária da paciência é o antídoto para eventuais esbarrões na discriminação. “Não ser igual a todo mundo gera atenção, mas acreditamos que juntos conseguiremos encontrar a verdade”, diz, com a certeza – ou fé – de que o mundo vai evoluir na direção do entendimento. Para Leandro Alves Lourenço, só fica melhor. Seus problemas começaram antes do nascimento, quando sua mãe fracassou ao tentar abortar a gravidez. É uma das razões possíveis para a tetraplegia parcial com a qual o estudante convive. Mas o que, a olho nu, parece tristeza virou, 21 anos depois, uma comovente história de superação. Além de cursar o primeiro ano do Ensino Médio, ele trabalha num colégio de Curitiba, sua cidade natal, e participa do Tribos da Paz, programa do Projeto Não-Violência, que dissemina a cultura da paz nas escolas paranaenses. Leandro entrou para a ONG dois anos atrás, depois de assistir a um encontro na sua escola. O debate explicitou a violência em seu conceito mais amplo – preconceito, ataques verbais, intolerância – e mobilizou o estudante. “Acredito no diálogo. Uma boa conversa resolve qualquer problema”, aposta ele, que na ONG integra o grupo de teatro. No fim de 2006, eles encenaram a peça “Escolhas”, história de um amor impossível entre um menino estudioso e uma integrante de gangue. “Interpreto um professor rigoroso, que não aceita diálogo, mas que no fim aprende a lição”, conta ele. Não é só no palco que Leandro transmite seus ensinamentos. Ele também luta pelo respeito aos deficientes e, apesar de viver numa das melhores cidades do país para portadores de problemas como o seu, sabe que há muito por fazer. “Se cada um cumprir com a sua parte, o mundo todo vai melhorar”, resume.
Preservar e cultivar
Esculpir, passo a passo, a consciência alheia, como prega Leandro, é trabalho que leva tempo – mas Maitê Ferreira Bernardes não tem pressa. Desde 2003, ela é integrante da Vida Urgente, campanha permanente de alerta aos jovens sobre a violência no trânsito. Maitê, 21 anos, não tem parentes para chorar na mortandade incessante das ruas e estradas brasileiras, e que afetam diretamente os jovens. Sabe, no entanto, da importância de conscientizar as pessoas da sua idade dos perigos ao volante. “No trânsito, os jovens também são um pouco sem noção”, constata. “Acham que tragédias só acontecem com os outros. Não pode.” A organização à qual a estudante está vinculada nasceu por causa de uma dessas catástrofes, a morte do jovem Thiago de Moraes Gonzaga, então com 18 anos, em maio de 1995, numa rua de Porto Alegre. Os pais dele criaram o Vida Urgente, que milita na área de segurança no trânsito. Maitê explica que o caminho não é o da repressão, longe disso. “Eu saio à noite, mas valorizo a segurança. É o que defendo com as pessoas nos bares onde realizamos o programa”, explica. “Para mim, é questão puramente cultural”, diz a estudante, que tem carteira de motorista, mas ainda não comprou carro. Agora, ela coordena um núcleo recém-criado na PUC gaúcha, onde cursa Psicologia e confirma o bem que o trabalho lhe fez. “Tenho orgulho de participar porque ganhei consciência dos perigos. Fica mais fácil para mobilizar os outros”, arremata. Numa outra ponta do Brasil, a baiana Eliandra Moreno dos Santos, 18 anos, faz o mesmo – mas pelo caminho da dança holística. Monitora do programa Arte pela Paz, da Fundação Terra Mirim, ela inicia outros jovens da escola ecológica, iniciativa que complementa o ensino público no Vale do Itamboatá, em Simões Filho, no Recôncavo Baiano. Eliandra mora em Dandá, comunidade quilombola vizinha à escola, onde conheceu o projeto de responsabilidade social, durante uma visita, ano e meio atrás. Num primeiro momento, achou aborrecido, não entendeu a importância daquilo. Mas depois se encantou. “Sou superfeliz por ter vindo aqui naquele dia. Adoro o que faço e vejo no rosto das pessoas como é bom para elas também”, observa a estudante do terceiro ano do ensino médio. Ela enxerga também mudanças em si mesma, no ritmo da solidariedade. “Mudei em casa. E estou mais falante e solícita. Antes, era tímida, calada, triste. Fazer o bem me fez bem”, festeja a estudante, na paz que pratica o tempo todo, na mais baiana alegria.
O Futuro é agora “Na comunidade onde eu vivo, o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, moram 140 mil pessoas, aproximadamente. Muita gente se assusta, quando vê o lugar, que fica na beira da Linha Vermelha, via expressa que leva do Aeroporto Internacional Tom Jobim à região mais rica do Rio. Todo mundo acha que lá só tem violência, bandidos e abandono. Não é assim. O censo do bairro Maré, feito em 2000, mostrou que os marginais não chegam a 2% da população. Somos quase todos trabalhadores. Eu procuro fazer minha parte, como coordenadora do jornal “O Cidadão”, produzido pelo Ceasm (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), com periodicidade mensal e tiragem de 30 mil exemplares. Estou no primeiro ano de Comunicação na PUC, onde quero aprimorar minha capacidade. Aprendi o valor da informação, como instrumento para aproximar comunidades de realidades semelhantes, mas que a violência afasta. Comecei no “Cidadão” há sete anos e devo ao trabalho meu amadurecimento como cidadã. Aprendi lá a importância da informação de qualidade, bem apurada e com a abordagem correta. Hoje tenho consciência de tudo que é violência: a falta do Estado, a poluição, o caos habitacional, o descaso, a insegurança. Sabemos o quanto precisamos batalhar pelos nossos direitos. Moro há 17 anos na Vila dos Pinheiros, com meu pai, minha madastra e quatro irmãos. Dá para notar a melhoria na auto-estima dos moradores. Antes, quase todo mundo dizia morar em Bonsucesso, o bairro mais próximo da Maré. Agora, muitos se dizem mareenses. Não temos que nos esconder.” Rosilene Matos, 24 anos, estuda jornalismo e vive no Complexo de Favelas da Maré, no Rio

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